PERIGO NO AR

Marcos Pontes
26/11/2008

Segurança de vôo é um assunto sério. No segundo fatal de um acidente aéreo, com centenas de mortos, já não há mais nada a fazer para reverter a situação, apenas investigar e lamentar. A questão da segurança tem que ser tratada muito antes. A prevenção é sempre o melhor remédio. Um remédio menos amargo. É uma solução sem lágrimas, sem comoção, sem corpos, sem incêndio, sem destruição, sem parentes desesperados procurando por alguma informação, sem desculpas, sem justificativa, mas, infelizmente, muitas vezes também sem a importância e a prioridade devidas.
Segurança de vôo não é assunto para ser tratado de forma reativa, comandado pelas notícias e fotos impressionantes do jornal logo após um acidente. Caso contrário, as autoridades vão ficar sempre apagando incêndios, literalmente!
É necessário tomar a frente, planejar, ser pró-ativo, fazer aquilo que é básico em qualquer estratégia de sucesso para o gerenciamento de tempo: dar prioridade às coisas importantes e não urgentes. Prevenção é isso, nunca é urgente, mas sempre é extremamente importante.
No presente momento, por ocasião dos resultados da investigação criminal do acidente da TAM em Congonhas, as atenções se voltaram novamente ao assunto. Diga-se de passagem, é sempre bom relembrar que a investigação de acidente, feita pelo Centro de Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos (CENIPA) com a finalidade única de evitar futuros acidentes semelhantes, embora focada no mesmo evento, obviamente não tem nada a ver com a investigação criminal, cujos objetivos são completamente distintos da investigação de segurança de vôo.
Nesse contexto, para quem trabalha há muitos anos na área de segurança de vôo, essa situação, infelizmente, é sempre repetitiva: muitas pessoas buscando “culpados” e “causas” de um acidente, como se um evento dessa proporção fosse resultado de apenas um pequeno conjunto de razões atuais muito específicas.
O que poucos concebem é que, na verdade, as “causas” do acidente não são “causas”, mas sim “conseqüências” da participação percentual de vários fatores contribuintes com raízes que são, freqüentemente, originadas muito tempo antes do acidente, e que não foram tratadas com a devida importância na PREVENÇÃO.
Por quê?
Justamente porque gasta-se muito tempo com as ações reativas, tratando das coisas “urgentes”, apagando incêndios que consomem recursos materiais e humanos das instituições, não deixando prioridade adequada para as ações pró-ativas, as ações importantes da prevenção!
Um exemplo típico desse fato ocorre no Brasil nesse exato momento.
Com os acidentes das aeronaves da GOL e da TAM, as atenções e esforços foram voltados para a correção das “causas atuais” dos problemas da aviação comercial e da infra-estrutura associada a esses vôos. Enquanto isso, o Brasil tem uma das maiores frotas de aviação geral do mundo, e que cresce dia-a-dia, tanto em número de aeronaves, como em probabilidade de acidentes.
Apenas como exemplo, falta controle efetivo do poder público, representado pela Agência Nacional de Aviação Civil (ANAC) para a construção e operação das aeronaves experimentais, dos “kits” montados em “oficinas não autorizadas”, ou até mesmo garagens. Existem muitos aeroclubes abandonados, as horas de instrução estão caras o suficiente para prejudicar a formação de várias maneiras, existem muitas oficinas de manutenção sem qualidade, entre outras coisas. Essas são apenas algumas raízes de problemas que se desenvolvem silenciosamente na aviação brasileira, como um câncer.
Com tudo isso acontecendo, é aconselhável que todos nós fiquemos atentos para o céu, pois a qualquer momento uma “geringonça voadora”, montada em garagem, pode cair nas nossas cabeças!
Apesar da brincadeira, o assunto é sério! Com a vontade de voar e de ter seu pequeno avião, pessoas morrem dentro de máquinas mal construídas e mantidas. Ainda pior, também matam outras pessoas no solo que, por azar, estavam no caminho do acidente.
Alguns poderiam perguntar: “mas isso só acontece aqui?”.
Claro que esses problemas não são específicos do Brasil. Os mesmos potenciais de risco foram observados e outros países com grande aviação geral, como os Estados Unidos, porém, em resposta a esta constatação, várias ações preventivas foram tomadas pelo estado.
Como um ótimo exemplo, em 2004, o FAA (Federal Aviation Administration) criou modificações na regulamentação correspondente à certificação de produtos e partes (FAR 21 - Federal Aviation Regulation 21) de forma a ter maior controle sobre a qualidade de construção de pequenas aeronaves leves esportivas e, ao mesmo tempo, promover o desenvolvimento de empresas sérias, e gerar empregos qualificados.
Aplicaram uma solução simples, como tudo que é eficiente: criaram uma categoria chamada LSA (Light Sport Aircraft - Aeronave Leve Desportiva) na qual, para serem classificadas como tal, as aeronaves precisam obedecer a critérios adequados de qualidade de fabricação (normas ASTM).
Como essas aeronaves são mais seguras, podem ser vendidas completas (não são “kits”) e podem operar comercialmente, naturalmente o mercado virou-se para as empresas qualificadas para produzi-las. Assim, ao invés do FAA tentar fiscalizar milhares de “fabricantes de garagem” (o que seria impossível), ele passou a fiscalizar apenas os fabricantes de LSA, obtendo os resultados de segurança e desenvolvimento desejados.
Outros países imediatamente seguiram o exemplo do FAA, adotando as mesmas modificações e obtendo os mesmos resultados positivos: mais segurança, melhores condições para a formação de pilotos, mais negócios, mais empregos!
No Brasil, a modificação do RBHA 21 (Regulamento Brasileiro de Homologação Aeronáutica 21) para atualizar a legislação nacional com o FAA 21 e acompanhar o desenvolvimento dos outros países de importância no setor aeronáutico, está pronta e aguardando aprovação pela ANAC (Agência Nacional de Aviação Civil) desde 2006.
Esta simples ação administrativa de prevenção permitiria vários efeitos positivos ao país, por exemplo: imediatamente daria maior controle da ANAC sobre a construção de pequenas aeronaves, aumentaria a segurança de vôo, e ainda, ao longo do tempo, ajudaria o desenvolvimento de empresas do setor, fomentaria a criação de novos empregos, adensaria a cadeia produtiva da EMBRAER, melhoraria a formação de pilotos nos aeroclubes, potencializaria maiores exportações do setor aeronáutico, etc. Essa ação e suas implicações positivas para o país são tão importantes que a FIESP incluiu este assunto (regulamentação imediata dos LSA), em seu relatório sobre a aviação civil do Brasil, feito há poucos meses por especialistas de várias áreas do setor aeroespacial, para o Ministro da Defesa.
Porém, saindo da eficiência da prevenção e voltando para a correção das deficiências a serem corrigidas pela investigação dos acidentes…
Logicamente, espera-se que, com a execução das recomendações do CENIPA nas respectivas investigações, teremos um “pequeno período” de melhor segurança. As “causas atuais” serão sanadas com “afinco”. Porém, a melhoria de “longo prazo” só é possível com o planejamento e a execução de atividades contínuas que visam eliminar do futuro as verdadeiras “raízes” dos fatores contribuintes de possíveis acidentes. Isso exige das autoridades (como a ANAC) muito esforço, atenção e prioridade constante para a prevenção, como o exemplo dado do caso dos LSA.
Para terminar, deixamos duas pequenas questões interligadas, para pensar: de onde você acha que sai grande parte dos pilotos que comandam as aeronaves comerciais que você voa, confortavelmente? O que você acha que acontecerá com a sua segurança se não for dada devida atenção, imediata, à aviação geral e aos aeroclubes?

Marcos Pontes
Colunista, professor e primeiro astronauta profissional lusófono a orbitar o planeta, de família humilde, começou como eletricista aprendiz da RFFSA aos 14 anos, em Bauru (SP), para se tornar oficial aviador da Força Aérea Brasileira (FAB), piloto de caça, instrutor, líder de esquadrilha, engenheiro aeronáutico formado pelo Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA), piloto de testes de aeronaves do Instituto de Aeronáutica e Espaço (IAE), mestre em Engenharia de Sistemas graduado pela Naval Postgraduate School (NPS USNAVY, Monterey - CA).
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